Art. 1º Fica criado o Programa de atenção humanizada ao aborto legal e juridicamente autorizado, no âmbito do município do Rio de Janeiro.
Art. 2º Este programa tem por objetivo instituir no âmbito do município do Rio de Janeiro o modelo humanizado de atenção às mulheres no aborto legal por meio da rede de assistência obstétrica do município que preze pelo acolhimento, orientação e atendimento clínico adequado, segundo referenciais éticos, legais e bioéticos, prezando pela saúde da mulher.
Art. 3º Para fins desse programa, entende-se por aborto legal os seguintes casos:
I - aborto necessário - se não há outro meio de salvar a vida da gestante, de acordo com o art. 128, I do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940);
II - aborto no caso de gravidez resultante de estupro - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal de acordo com o art. 128, II do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940);
III - antecipação terapêutica do parto em razão de feto anencéfalo (vide ADPF 54);
IV - os abortos autorizados por decisão judicial.
Parágrafo único. No que tange ao inciso III, aplicar-se-á o disposto na normativa do Ministério da Saúde relativa ao tema.
Art. 4º Os princípios adotados por este programa são:
I - o fortalecimento do sistema único de saúde como equipamento público prioritário no atendimento à mulher;
II - o atendimento por equipe interdisciplinar;
III - a presunção de veracidade da fala da mulher;
IV - o acolhimento como dever e norteador do trabalho da equipe de saúde;
V - a escuta qualificada da mulher nos atendimentos por toda a equipe de saúde;
VI - o dever da equipe médica de informar à mulher, de forma qualificada, de todos os procedimentos a serem realizados.
Art. 5º São objetivos da implementação deste programa:
I- respeitar a autonomia da mulher, entendida como seu direito de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e à sua vida;
II- acolher e orientar as mulheres na situação de aborto legal;
III- garantir o atendimento integral e interdisciplinar da saúde da mulher, de forma prioritária;
IV- garantir o atendimento ético pelo profissional de saúde, evitando que aspectos sociais, culturais, religiosos, morais ou outros interfiram na relação com a mulher;
V- eliminar a violência obstétrica nas situações de aborto legal;
VI- o atendimento sem discriminação por motivo de raça, orientação sexual, identidade de gênero e geracional em todos os atendimentos.
Art. 6º São ações a serem implementadas por esse programa:
I - o Poder Executivo oferecerá capacitação permanente da equipe de referência do serviço de assistência obstétrica que preste atendimento aos casos de aborto legal nos princípios das normas técnicas do ministério da saúde;
II - divulgação nas unidades da rede de saúde do município do Rio de Janeiro das informações previstas nesta Lei;
III - a implementação em toda a rede de assistência obstétrica do município do Rio de Janeiro do atendimento humanizado ao aborto legal;
IV - ofertamento de informações às mulheres atendidas sobre planejamento reprodutivo pós procedimento;
V - o encaminhamento da mulher à unidade básica de saúde referenciada;
VI- oferecimento de atendimento psicológico à mulher e aos profissionais de saúde;
VII - a criação de campanhas de educação e sensibilização a atenção humanizada ao aborto legal nos moldes das normas técnicas cabíveis dirigida aos/às profissionais da rede de assistência obstétrica, e, no que couber, às mulheres atendidas nos serviços públicos de saúde;
VIII - a elaboração pelos serviços de saúde aqui tratados de protocolos e fluxogramas conforme os preceitos das normas técnicas do Ministério da Saúde.
Art. 7º O atendimento necessário para a realização do procedimento de aborto legal, previsto no art. 3º desta Lei será realizado em toda rede de assistência obstétrica pertencente ao Sistema Único de Saúde do Município do Rio de Janeiro
Art. 8º A violência obstétrica no atendimento e nos procedimentos previstos nesta Lei, deverá ser apurada por meio de sindicância.
§1º Considera-se violência obstétrica todo ato praticado por profissional de saúde ou outro profissional que de qualquer forma participe do atendimento à mulher , familiar ou acompanhante que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres submetidas aos procedimentos previstos nesta Lei.
§ 2º Para efeitos desta Lei considerar-se-á ofensa verbal ou física, dentre outras, as seguintes condutas:
I - tratar a mulher de forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira desrespeitando os princípios do atendimento humanizado;
II - recriminar a mulher pelas suas características físicas ou zombar de seu comportamento emocional durante o procedimento;
III - negar ou procrastinar o atendimento da mulher, a ser submetida ao aborto legal;
IV - por em dúvida a palavra da mulher quanto ao fundamento legal para realização do aborto legal e sua decisão pessoal de procedê-la;
V - ameaçar, acusar e culpabilizar a mulher em qualquer momento do atendimento ou realização do procedimento do aborto legal;
VI - coagir, com qualquer finalidade, a mulher em situação de aborto legal a não realização do procedimento;
VII - realizar comentários constrangedores à mulher, por sua cor, raça, etnia, idade, escolaridade, religião ou crença, condição socioeconômica, estado civil ou situação conjugal, orientação sexual, número de filhas e filhos, toda e qualquer conduta que lese a idoneidade moral da mulher em caso de aborto legal;
VIII - impedir a presença de acompanhante durante o atendimento e realização do procedimento;
IX - impedir a mulher de se comunicar com o mundo exterior através de celular, telefone, e-mail, ou qualquer meio possível durante o atendimento, quando não representar risco a vida da mulher.
Art. 9º Entende-se por atendimento humanizado a união do comportamento ético, conhecimento técnico e a oferta de cuidados dirigidos às necessidades das mulheres.
I - respeitar a fala da mulher, lembrando que nem tudo é dito verbalmente, auxiliando-a a contatar com os seus sentimentos e elaborar a experiência vivida, buscando a autoconfiança;
II - organizar o acesso da mulher, priorizando o atendimento de acordo com necessidades detectadas;
III - identificar e avaliar as necessidades e riscos dos agravos à saúde em cada caso, resolvendo-os, conforme a capacidade técnica do serviço, ou encaminhando para os demais serviços da rede de acolhimento;
IV - dar encaminhamentos aos problemas apresentados pelas mulheres, oferecendo soluções possíveis e priorizando o seu bem-estar e comodidade;
V - garantir a privacidade no atendimento e a confidencialidade das informações;
VI - realizar os procedimentos técnicos de forma humanizada e informando às mulheres sobre as intervenções necessárias.
Art. 10. A objeção de consciência de qualquer profissional de saúde lotado nas unidades da rede de assistência obstétrica do município não afasta a responsabilidade da unidade de saúde na realização da garantia do direito ao aborto legal em tempo hábil.
Parágrafo único. Para fins do cumprimento do disposto no caput as unidades da rede de assistência obstétrica manterão uma equipe multiprofissional que possa realizar o atendimento do aborto legal, durante seu horário de funcionamento.
Art. 11. O disposto nesta Lei será afixado em todas as unidades de saúde do Município do Rio de Janeiro e equipamentos municipais de atendimento à mulher.
Art. 12. Esta Lei entrará em vigor noventa dias a partir de sua publicação.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê às mulheres o direito a realização do aborto, sem punição para a mesma e a/o médica/o, nas seguintes hipóteses: para salvar vida da gestante ou em caso de gravidez decorrente de estupro, previstas no art.128, CP, desde 1940; e antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia do feto a partir de 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal. O acesso aos serviços de saúde nos casos de aborto permitidos por lei, só foi regulamentado em 1999 com a norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, atualizada em 2005 e 2011.
Este projeto orienta-se pelo melhor entendimento do Supremo Tribunal Federal, que adota interpretação restritiva em relação à reserva de iniciativa parlamentar, no que concerce a elaboração de projetos de leis que tratem de programas e políticas públicas, assegurando a constitucionalidade destes por reconhecer a competência do Poder Legislativo também referida à edição de programas e políticas que voltem-se ao serviço público ofertado ao povo, conforme os julgados do Recurso Extraordinário nº RE 290549 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 28/02/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-064 DIVULG 28-03-2012 PUBLIC 29-03-201 e da Ação Direta de Constitucionalidade-ADI nº 3394/AM. É importante salientar que este tema também foi adequadamente abordado em Estudo Técnico, nº 05/2016/CAL/MD/CMRJ desta Casa Legislativa, elaborado pela Consultoria e Assessoramento Legislativo da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Atualmente, as normas técnicas de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes e Atenção Humanizada ao Abortamento e Atenção às mulheres com Gestação de Anencéfalos, todas do Ministério da Saúde, normatizam o atendimento das/os profissionais às mulheres em situação de aborto legal no serviço público de saúde.
Diante deste amplo aparato legal e da distância da efetivação deste direito, a presente programa busca inserir no ordenamento jurídico municipal os parâmetros trazidos pela Norma técnica de atenção humanizada ao abortamento produzida no Ministério da Saúde no que tange o atendimento ao aborto legal no âmbito do município do Rio de Janeiro.
A atenção integral a saúde da mulher em caso de aborto está prevista na Lei Orgânica do Munícipio em seu art. 366 com a seguinte redação: O Município garantirá assistência à mulher, em caso de aborto, provocado ou não, na forma da lei, como também em caso de violência sexual, asseguradas dependências especiais nos serviços garantidos direta ou indiretamente pelo Poder Público.
No entanto, as mulheres que se encontram em situações permitidas por lei para a realização do aborto - por si só dolorosas, como risco de vida, feto com anencefalia e gravidez decorrente de estupro encontram inúmeras dificuldades para ter seu direito garantido.
De acordo com as informações do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, do Ministério da Saúde, no Brasil existem 71 hospitais aptos para realizar o procedimento. Destes, 3 seriam no Estado do Rio de Janeiro.
A realidade na Cidade do Rio de Janeiro é ainda mais dramática, atualmente somente uma maternidade realiza o procedimento do aborto nos casos permitidos por lei, levando assim a um grande prejuízo no acesso ao direito já garantido na legislação cabível.
Ao nos debruçarmos sobre os dados da motivação com maior recorrência para a procura dos serviços de aborto legal, o estupro, fica ainda mais nítido a negação de direitos e as violências a que às mulheres estão submetidas pela falta de oferecimento deste serviço.
No Brasil, são registrados 5 casos de estupros a cada hora, alcançando o número 45.460 casos denunciados em 2015 (10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública). É preciso ressaltar, que estes números embora alarmantes não representam o total de casos, visto que o estupro é o crime que apresenta a maior taxa de subnotificação no mundo, estudos apontam que apenas 35% das vítimas costumam denunciar (National Crime Victimization Survey ).
No Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2015 foram registrados 4.128 estupros contra mulheres, destes cerca de 33% ocorreram no município do Rio de Janeiro, 1.364 (Dossie Mulher 2016).
Um estudo realizado Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) a partir do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do SUS de 2011, apontou que 7% dos casos de violência sexual resultam em gravidez. Revelou, porém, que 67,4% das mulheres grávidas em decorrência de estupro em 2011 não tiveram acesso ao serviço de aborto legal.
O que quer dizer que a ampla maioria destas mulheres não teve seu acesso ao direito do aborto legal garantido, podendo inclusive, terem se submetido à métodos clandestinos de aborto, colocando sua saúde e vida em risco.
Esta também é a realidade das mulheres na cidade do Rio de Janeiro que buscam seus direito ao aborto legal, seja em decorrência de um estupro, uma das mais ultrajantes formas de violência contra as mulheres ou das outras hipóteses previstas em lei, tem muitas vezes seu direito negligenciado pela falta de acesso aos serviços já previstos em lei.
Uma pesquisa realizada pela Centro Feminista de Estudos e Assessorias em 2013 apontou que no Estado do Rio de Janeiro, “o saldo de não atendimento do serviço de aborto legal às mulheres vítimas de estupro chega a 86%. Apenas 5% dos profissionais da saúde disseram realizar abortamento legal em caso de estupro; 70% afirmaram que a prática não compete à instituição e 9% responderam que “mais alguém realiza”... Nem mesmo a orientação da vítima de estupro a respeito do direito à interrupção voluntária da gestação, caso ela aconteça, está garantida. De acordo com o estudo, 56% dos entrevistados afirmaram informar a mulher; 36% disseram não fornecer esse esclarecimento; 19% dizem “que alguém realiza” e 17% acreditam que não é papel do serviço de saúde prestar esse tipo de orientação.”
Em pesquisa acadêmica de FARIAS e CAVALCANTI, realizada na Maternidade Fernando Magalhães, única realizar o atendimento ao aborto legal no município do Rio de Janeiro, identificou três obstáculos ao bom funcionamento do serviço a objeção de consciência; falta de divulgação do serviço; e poucos cursos de treinamento e qualificação para atender mulheres em situação de violência em conformidade com a legislação.
A pesquisa Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional, também a aponta que “A falta de informação dos profissionais sobre a legislação e as políticas públicas faria com que muitas barreiras fossem criadas, prejudicando a qualidade do atendimento e, às vezes, a viabilidade da interrupção da gravidez. Principalmente para aqueles serviços nos quais os profissionais são plantonistas e inexiste equipe específica para o aborto legal, “[...] seria importante passar por cursos, por treinamento, compartilhar experiências e dificuldades. Temos que implementar isso em todo serviço [...]”. Os entrevistados também apostam que a imposi-ção de barreiras burocráticas seria reduzida se os profissionais fossem treinados em conceitos como “saúde sexual e reprodutiva”, “violência de gênero”, “humanização” e “direitos humanos”.
Diante de tais dados fica evidente a necessidade da ampliação e qualificação no atendimento ao aborto legal no âmbito do município do Rio de Janeiro, com a finalidade de garantir os direitos assegurados às mulheres nessas situações, de acordo com as normas de atenção humanizada.
Dessa forma, este programa visa estabelecer o programa de atendimento humanizado no âmbito do município em consonância com as normas técnicas já consolidadas pelo Ministério da Saúde.