A Cidade do Rio de Janeiro pela sua relevância e pluralidade de história e memória que ocupa no nosso País, merece um tratamento a altura dessa importância que tem mantido ao longo dos tempos.
Na esteira da contemporaneidade, veio uma grande produção de informação e fez com que os saberes e memórias do passado sejam substituídos pela constante inovação midiática, pautada em relações voláteis típicas da pós-modernidade. Durante grande parte da história do Brasil, a valorização de saberes, memórias e lugares somente ocorreu quando esses eram referentes às grandes personalidades, na maioria das vezes pertencentes à elite econômica. Os saberes comunitários presentes nos bairros, nas populações menos abastadas ou em outros grupos sociais são constantemente desconsiderados tanto pelo público quanto privado e às vezes pelas escolas e academias, que preferem utilizar o conhecimento legitimado pela racionalidade científica.
São recentes no Brasil as políticas públicas voltadas para a valorização do patrimônio (material e imaterial) vinculado a grupos sociais menos favorecidos e excluídos. No bojo dessas discussões, faz-se necessário uma proposta que vise resgatar a história e a memória de bairros centrais e periféricos da Cidade do Rio de Janeiro. Dessa forma, pretendemos contribuir para verdadeira história e memória, também a ser aplicada a educação e cultura fundamentalmente a valorização de sujeitos e saberes que por muito tempo permaneceram excluídos e desvalorizados em nossa sociedade. É nossa recomendação que o Poder Executivo através da Secretaria de Cultura e Educação possa criar um GT (Grupo de Trabalho), inclusive envolvendo os Conselhos Municipais, a Universidade, Associações e Instituições Civis como um todo, para investigação da História Oral e Documental dos envolvidos, e colham depoimentos, verifiquem documentos, fotos dentre outros vestígios, objetivando contrapor as diferentes versões acerca da história do bairro, a partir das memórias dos moradores, relacionando-as com aspectos gerais da história da região e do Brasil. Bem como, sugerimos a que as bibliotecas municipais devam manter uma seção especializada, denominada História e Memória dos Bairros, para divulgar e consolidar a historiografia atual e a nova que surgir a partir dessa determinante atuação.
Além de valorizarmos o conhecimento dos moradores do bairro e suas memórias, o projeto contribuiu para tornar o processo educativo mais interessante, utilizando a comunidade e escola para atuarem como agentes históricos multiplicadores desse saber.
A ideia é a presente proposta promover uma discussão acerca das possibilidades de diálogo entre História, Memória, Educação e Cultura, bem como identificar na construção das histórias dos bairros um potencial transformador das realidades sociais e individuais. Para ao mesmo tempo valorizar os sujeitos que concordam em compartilhar suas histórias de vida e suas memórias. Nesse empreendimento de (re) construção das histórias do bairro, não são somente os pesquisadores que adquirem e produzem conhecimento, mas os próprios moradores que, ora são entrevistados, ora podem ser entrevistadores. Falamos em histórias ou, como Siman (2008), em labirintos, visto que a história de uma comunidade não é fechada nem linear, e muito menos única. O que temos são vestígios de um tempo que passou e que continua presente a partir das memórias vivas, acessadas por meio de entrevistas, boas conversas, documentos e manuscritos entre outros.
No contexto em que vivemos, no qual as informações circulam e são produzidas numa velocidade imensurável, é possível manter algum interesse no passado? Tais aspectos, tão caros à nossa sociedade e à modernidade, constituem-se como obstáculo quando o assunto são as lembranças e as identidades remetidas ao pretérito. Se a relação com o passado mudou, pautando-se agora num relacionamento nostálgico, junto a um futuro incerto, o que nos resta seria somente o nosso presente? O hedonismo contemporâneo, tão discutido nos trabalhos sociológicos hodiernos que abordam a pós-modernidade, acaba por priorizar uma vivência demasiadamente marcada pela preocupação com o tempo presente. Nessa perspectiva, “como criar, para as novas gerações, nascidas num contexto de mudanças rápidas e numerosas, o sentido do passado e de orientação temporal para as suas vidas?” (SIMAN, 2008).
As maneiras de ser e estar no mundo se modificou significativamente com o advento da modernidade, criando um novo tipo de sujeito, cada vez mais autônomo e desvinculado de qualquer instituição única e centralizadora no fornecimento de sentido à existência humana (BERGER; LUCKMANN, 1996). História e Memória formam um conjunto muito rico na construção de identidades locais, regionais e nacionais. O ensino de história tem sido muito utilizado como instrumento de construção de identidades, como mostra o artigo de Siman (2008) e outros trabalhos que discutem o ensino da história local, como Monteiro, Gasparello, Magalhães, (2007) e Buarque (2010). Mas a observa Allieu (apud MONTEIRO, 2005), a dimensão da memória e da identidade no ensino de história encontra-se em crise na contemporaneidade:
A memória em nosso universo ocidental multicultural, sobre quais raízes construir, qual memória ensinar hoje em dia? Até muito recentemente, operávamos a partir de uma escolha realizada pelo Estado que definia que passado seria necessário conhecer e lembrar. Nos dias atuais, confronta-nos o desafio de contemplar a multiplicidade do mundo e sua indeterminação para auxiliar nossos alunos a construir sua memória e sua identidade a partir de uma história que considere as rupturas, conflitos, crises públicas e privadas, em suas infinitas diferenças (ALLIEU apud MONTEIRO, 2005).
De acordo com Le Goff (1992), tornar-se senhor “da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas” (LE GOFF, 1992, p.426). Muito recentemente, as políticas públicas brasileiras têm fornecido a devida atenção aos “lugares de memória” localizados em regiões periféricas pertencentes a comunidades minoritárias ou excluídas da sociedade. As políticas de preservação patrimonial voltam-se, geralmente, para a preservação dos monumentos consagrados às elites econômicas, aos sujeitos “notáveis”, deixando de lado outros objetos e saberes. Por que não conservar a história de um bairro periférico? Somente os centros históricos possuem valor patrimonial? Todo bairro e toda comunidade, grande ou pequena, rica ou pobre, nova ou antiga, possui a sua história, e é na história local que os moradores encontram a sua identificação inicial, o seu pertencimento, a sua identidade coletiva e individual. Levantar a história dos bairros é dar voz a outros “lugares de memória”, a outros sujeitos, a outros saberes. A memória ocupa um espaço privilegiado no fornecimento de sentido à existência humana e na democratização e valorização de diferentes saberes, visto que ela “é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 1992).
A memória constitui-se como uma fonte essencial para a construção da história e da identidade de indivíduos e grupos sociais. Outro ponto positivo dessa relação memória e história é a valorização de sujeitos que, muitas vezes, não possuem um espaço social para expressar a sua cultura, identidade e a sua maneira de perceber e estar no mundo. E um dos caminhos para que essas “comunidades esquecidas” sejam reconhecidas, assim como reconheçam e valorizem a si próprias, é a partir da relação e diálogo entre memória, história, educação e cultura na construção das histórias locais, do bairro, da família e de pessoas, que implementem uma engrenagem que se movimente e funcione.
A história local não deve e não pode ser olhada apenas num viés interpretativo acadêmico, mas contar com os diferentes olhares advindos dos múltiplos atores, ou seja, daqueles que podem fornecer suas memórias.
Nenhum saber (comunitário, acadêmico, público ou privado) se sobrepõe ou se mostra mais validado, ou mais importante, pois na verdade é o somatório ou complementação deles que concorrem para instrumentalização da história e historiografia específica dos bairros. O diálogo entre diferentes leituras de mundo possibilitou a construção de labirintos dentro de várias histórias que foram se formando. Em certos momentos, como também aponta Siman (2008), ficamos perdidos nos labirintos do bairro em meio a muitos depoimentos e memórias, orais e escritos, criando diferentes versões acerca da mesma temática. Quando se trabalha com história do bairro a partir da memória dos moradores, não se constrói uma, mas várias histórias, exatamente porque cada morador é um sujeito e, dessa forma, possui uma leitura de mundo e uma vivência específicas (CHARLOT, 2000).
Ao invés de um tempo progressivo, representado por meio de uma reta [...] temos um tempo labiríntico, cheio de sinuosidades e que, para compreendê-lo, é preciso aprender a decifrar sinais, indícios e as mais aparentes insignificâncias: desde o rosto daqueles que circulam as ruas no presente, aos gestos, esquecimentos, pausas, olhares, um pedaço de papel retirado da gaveta pelo narrador, às ruínas presentes no espaço da cidade, aos sinais escondidos pelas camadas das intervenções humanas. (SIMAN, 2008).
Influenciaram também, através dessa construção de linha teórica o Prof. Tiago Pires e o Prof. Carlos Alberto Pereira, que temos obrigação de citar, em razão de honestidade intelectual
Dentro desse Pensamento, acreditamos que esse Projeto possa reescrever parte da memória e história não alcançada, desprezada ou não priorizada da nossa Cidade.