DESPACHO: A imprimir
DECISÃO DO PRESIDENTE
Cuida-se o presente expediente de recurso interposto pelo Senhor Vereador Rafael Aloisio Freitas contra o despacho desta Presidência que restituiu a proposta de projeto de lei de sua lavra, que intencionava a proibição da utilização de inteligência artificial na produção de dublagem de filmes e produções artísticas.
Antes de adentrar na explanação do assunto em voga, vejamos a íntegra do despacho devolutório:
“Restitua-se ao autor com base no art.194, inciso I, do Regimento Interno, tendo em vista a flagrante inconstitucionalidade da matéria versada na presente propositura legislativa, porquanto contém campo de aplicação normativa extravagante à competência municipal prevista no elenco do art.30 da Lei Orgânica do Município. Por oportuno, registre-se que a Constituição da República, ao teor do art.22, incisos I e XVI, determina que compete privativamente à União legislar, respectivamente, sobre direito do trabalho e condições para o exercício de profissões. No caso da presente proposta, refere-se à vedação da substituição da atividade profissional de dublador pelo uso da tecnologia de inteligência artificial, portanto de alçada exclusivamente da legislação federal.”
Ainda que o nobre recorrente diga que sua intenção não seja legislar sobre o direito do trabalho ou sobre o exercício do ofício de dublador, verifica-se pela simples leitura do texto normativo de sua proposta que o intuito é obviamente de proteção da atividade profissional, de reserva de mercado de trabalho do dublador, diante da iminente ameaça de profusão indiscriminada do uso da alta tecnologia, chamada inteligência artificial, ou tão somente I.A, que gradativamente no decorrer dos próximos anos causará imenso impacto no mundo das profissões, substituindo o trabalho humano.
A propósito, diga-se que recente relatório, divulgado no mês de julho do ano em curso, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico-OCDE, da qual o Brasil é membro, estima que quase 30% dos empregos dos países partícipes são de profissões com elevado risco de automatização pela inteligência artificial e com essa premissa propugna que os países membros devem estabelecer políticas públicas que evitem que um grande contingente de trabalhadores esmoreça na inatividade no decurso das suas idades produtivas pela inutilidade ou irrelevância do trabalho humano.
Urge, portanto, que leis sejam elaboradas para a proteção do mercado de trabalho humano para a dignidade dos que laboram. Conforme tão bem ilustra a dissertação do Juiz do Trabalho do TRT da 12ª Região/SC, Oscar Krost, mestre e doutor em Direito pela UFSC, intitulada Inteligência Artificial (I.A) e o Direito do Trabalho: Possibilidade para um Manejo Ético e Socialmente Responsável, o uso da inteligência artificial no âmbito das relações de emprego ou de trabalho deve ser uma ferramenta coadjuvante no desenvolvimento humano e do aprimoramento das atividades humanas, mas não o elemento que suplante e torne descartável o próprio ser humano.
Sob essa inspiração, é louvável a proposta pretendida pelo Senhor Vereador Rafael Aloisio Freitas, porque visa à proteção do direito ao trabalho e ao exercício da atividade de dublagem. Todavia, quanto ao aspecto constitucional, se trata de matéria inócua, sem a possibilidade de efetividade jurídica no plano municipal pela nódoa da sua manifesta inconstitucionalidade, uma vez que o assunto constitui competência privativa da União para legislar, consoante a seguinte diretriz expressa na Carta Magna:
“Art.22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I- direito (....) do trabalho;
----------------------------------------------------------------------------------
XVI- (...) condições para o exercício de profissões.
---------------------------------------------------------------------------------”
Observe-se que o parágrafo único do mesmo dispositivo transcrito diz que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas no art.22. Logo, fica claro que, para efeito da temática sobre direito do trabalho e o exercício de profissões, os municípios não podem jamais exercer essa competência legiferante.
De outro modo, tampouco poderia o Município exercer a faculdade supletiva à legislação federal ou estadual a que faz alusão o art.30, inciso II, da Constituição da República com vista à proteção da profissão de dublador pela ameaça da utilização da inteligência artificial.
Não obstante o autor da proposição restituída, faça alegação no seu texto de recursão que essa é a finalidade da propositura de sua autoria, esclareça-se ao nobre edil que a Lex Mater previu a proteção do trabalho humano em virtude da automação, nestes termos:
“Art.7ª – São direitos dos trabalhadores (...):
----------------------------------------------------------------------------------
XXVII- proteção em face da automação, na forma da lei;
----------------------------------------------------------------------------------“.
Essa proteção ao trabalhador (direito do trabalho), além de ser atribuição exclusiva da União para legislar, como vimos anteriormente, também não permite falar que o Município possa suplementar a legislação federal, porque essa legislação inexiste atualmente no campo jurídico nacional em relação ao uso da inteligência artificial no mercado de trabalho. Não há ainda leis sobre o assunto. Apenas, tramita no Senado Federal e na Câmara dos Deputados projetos de lei que dispõem sobre o uso da inteligência artificial. Se não existe legislação federal a respeito, a conclusão é óbvia, não pode o Município suplementar.
É visível o acentuado impacto da automação, robotização e mais recentemente dos programas tecnológicos com algoritmos de inteligência artificial no mercado de trabalho e nas respectivas ocupações, porém a proteção que se faz necessária à manutenção do trabalho humano e de exercício profissional depende exclusivamente da elaboração de legislação pelo ente federativo competente para atender essa finalidade social de proteção do trabalho humano aos olhos do ordenamento constitucional brasileiro.
Com esse paradigma, cite-se a lição do emérito professor e jurista José Afonso da Silva in Direito Constitucional Positivo:
“O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades dos componentes do Estado federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local, (...)”.
Por conclusão, ao arrimo desse postulado constitucional de repartição de competência dos entes federativos, depreende-se que a proteção da profissão de dublador diante da ameaça da utilização de inteligência artificial (nas palavras do próprio recorrente) constitui assunto de predominância de interesse geral, nacional, de importância para todos os brasileiros que exercem essa atividade profissional e não apenas daqueles que trabalhem no Município.
Logo, o assunto está na alçada privativa da legislação federal conforme determina o art. 22, incisos I e XVI, da Constituição da República, sendo manifestamente inconstitucional a apresentação de proposta com aquele objetivo no plano municipal.
Diante dessas flagrantes evidências de INCONSTITUCIONALIDADE da matéria apresentada pelo nobre Vereador Rafael Aloisio de Freitas, a Presidência por dever de ofício DENEGA PROVIMENTO ao recurso de S. Exa.
Imprima-se. Nos termos do art. 289 do Regimento Interno, dê-se prossecução ao expediente recursal, encaminhando-o à douta Comissão de Justiça e Redação para parecer.
Gabinete da Presidência.
Em 21/09/2023
CARLO CAIADO - Presidente
|